Uma gravata incomoda muita gente
Notas sobre poder, masculinidade e o fetiche da fragilidade
A gravata — esse pedaço de tecido nobre amarrado com precisão no centro do tórax — é um símbolo de formalidade, elegância e, claro do poder do masculino. É tosco, mas simbologias são toscas, talvez a gravata seja, de fato, um símbolo fálico. Um falo de tecido, pendurado sobre o peito como uma bandeira, um lembrete visual de quem manda — ou, mais precisamente, de quem supõe mandar.
RuPaul disse que “todo mundo nasce pelado, o resto é drag”. O que significa que as roupas não são femininas ou masculinas sem um imagético coletivo construído. O feminino e masculino não tem nada a ver com seu sexo biológico, eles são performances aprendidas.
Se você se move de forma rígida, travada e senta com as pernas afastadas, é masculino. Já movimentos delicados e sentar-se de pernas cruzadas, feminino. E isso é tudo, menos natural. É aprendido: “senta direito, fecha as pernas menina” ou “homem não chora, homem não isso, homem não aquilo”. Se não é natural, é teatro, performance.
Nascemos pelados de roupas e de cultura, o resto tudo é drag, tudo performance. E nos apegamos a essa construção chamada “eu” como se ela fosse estável, imutável, como se não fosse um conjunto de influências, tradições, conceitos e pré-conceitos.
Pausa. Escoceses de saia cruzando a sala.
Voltando à gravata. Por que incomoda tanto, porque hoje, em 2025 existe uma “rejeição” às mulheres de gravata? O mesmo velho argumento de “o guarda-roupa feminino é tão rico, para que usar peças ‘de homem'?”. Já falaram isso sobre mulheres de calças.
Como eu também fiz uma construção do meu “eu” rodeada de valores que não são, à priori, meus, posso explicar o sentimento agridoce ao ver uma mulher de gravata: serve de lembrete daquilo que ela não é e não tem. Não é homem, é o outro, é o segundo sexo. Ou seja, ao tentar “emprestar” um símbolo de poder masculino, acaba reforçando ainda mais que o poder não nos pertence. Não hoje, não nesse mundo. Ao mesmo tempo, penso, já é hora de acabar com esse tabu.
O terno também já foi símbolo de autoridade masculina e até após os anos 70, com o lançamento do Le Smoking de Yves Saint Laurent, atrizes famosas eram barradas em restaurantes por estarem com o traje. Mesmo nos anos 80 quando o “terninho feminino” entrou de vez na vida das mulheres que trabalhavam já havia essa sensação agridoce. Ok, o terno foi aceito, mas o que fazer com a sensação de sermos “obrigadas” a nos “fantasiar de homem” para sermos levadas a sério no ambiente profissional? Então, compartilho um pouco do sentimento de aversão à gravata, mas faço questão de fingir que não. De exaltar, de elogiar, de engajar até normalizar.
Que acerto do figurinista do revival de Vale Tudo colocar Odete Roitman de gravata
A gravata não é uma peça neutra, fato, ainda é um marcador simbólico do poder masculino. Assim como os músculos hipertrofiados, o timbre de voz grave —que também causam aversão quando estão no sexo feminino — a gravata participa dessa construção “performativa” do que se convencionou chamar de “masculino”.
E o que acontece quando mulheres se apropriam de tais códigos? Quando colocam o terno, a gravata, ou não afinam a voz e treinam os músculos? Quando não aceitam mais encenar o feminino?
Violência. Seja ela verbal ou física. Há relatos de transfobia contra mulheres cis* que não foram femininas o suficiente em vestiários de academias, em banheiros de restaurante. É isso que acontece com mulheres que não correspondem ao estereótipo cultural do feminino.
*mulheres cis tem o sexo biológico feminino e se identificam como mulher.
Numa sociedade que sexualiza a vulnerabilidade feminina — onde ser jovem, magra, instável e frágil é visto como atrativo pelo sexo oposto — a mulher forte, física e psicologicamente é, ainda, uma afronta. Não à toa, homens brasileiros como o deputado estadual Arthur do Val ficam felizes em descobrir que as refugiadas de guerra “são fáceis porque são pobres” (áudio amplamente divulgado, viral na internet), “é inacreditável a facilidade”. Em comparação “essas minas em São Paulo você dá bom dia e ela ia cuspira na sua cara”. Já lá com as refugiadas de guerra “deusas, você casa e faz tudo que ela quiser". A tradução? O que se busca não é amor, é hierarquia. Vulnerabilidade.
A cena de abertura do seriado The Idol traduz a sexualização da vulnerabilidade com precisão brutal : a equipe de marketing discute se não é cedo para expôr a protagonista, que ainda está com a pulseira da internação da clínica psiquiátrica, nas fotos do novo álbum. “Doença mental é sexy” a empresária da cantora diz. “Você nunca teria chances com uma mulher como essa, a não ser que ela tivesse sérios problemas mentais, por isso digo que doença mental é sexy”. Esse diálogo mostra como a loucura, a vulnerabilidade é um “tempero erótico” para uma mulher, sobretudo quando se trata de um produto pop.
Quando uma mulher usa gravata ou faz crescer seus músculos, ela está usando não só um código estético, mas um campo simbólico proibido para ela. Está dizendo: “Eu também posso portar o masculino” Ainda que não o seja, no sentido anatômico, homem, pode simbolizá-lo. E isso não tem a ver, necessariamente, com querer ser homem. Tem a ver com reclamar o direito de não ser obrigada a apresentar uma versão “feminina” de si mesma. De simular a frágil, a disponível, a vulnerável, esse papel que os símbolos do feminino tendem a reforçar.
Esses elementos femininos tão amado pelos homens:
A magreza, que indica vulnerabilidade por falta de força, dá a ideia de alguém que precisa de proteção, proteção contra o que? Geralmente, outros homens. A cintura fina, contida no espartilho. Contida como a mulher deve ser. Sapatos de salto altos e finos que dificultam a locomoção e provocam dor. Sim, andar dói para algumas mulheres. A voz suave e fina para quase nem se fazer ouvir. As novinhas, as magrinhas, as loirinhas em tons pastel de voz fina. Atraentes pela vulnerabilidade, vistas pela função.
Decorar, agradar, enfeitar, servir e criar são esses os desejos das tradwives* abreviação para tradicional wife, que são mulheres que se orgulham em 2025 de vestirem-se e agir como se vivessem entre os anos 40 e 60, cumprindo o papel tradicional de gênero e aceitando restrições de liberdade em nome de “estabilidade financeira”, que seria o casamento, inclusive o com separação total de bens.
Em épocas de revival não só de novela, mas de comportamento, usar uma gravata talvez ainda seja um ato político.
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tem um erro de ortografia no box, escrevi censura com s. Não dá pra corrigir, já tá no email das pessoas. Quem ficou com vontade de corrigir: leia o texto "só gente babaca corrige o português alheio" do Alex Castro. Abraços