E se o que chamamos de bonito, ou de bom gosto, for só outro nome para privilégio? Faz um tempo que tenho vontade de escrever sobre beleza. Não aquela ideia de beleza usada para vender skincare como autocuidado ou batom empoderador. A beleza que nos toca, que faz chorar os olhos do turista. A beleza da síndrome de Florença.
Geralmente ligada aos sentidos visão e audição. Mas hoje vou me ater à estética.
Existem coisas que são inegavelmente visivelmente lindas, paisagens naturais, por exemplo. E o Brasil é, de fato, abençoado por Deus e bonito por natureza.
Já o senso estético brasileiro é bem pouco exigente. Depois que você educa os olhos para o belo, começa a questionar, por exemplo, qual a necessidade dos produtos de limpeza terem rótulos tão poluídos e dos objetos serem feitos com, no mínimo, três cores. Pra mim era o comum, o que eu conhecia, não pensava nisso, até conhecer outra realidade.


Lembro de um episódio no qual uma figura pública estrangeira, de passagem por São Paulo a comparou com uma cidade terceiro-mundista para a mídia provocando polêmica entre os paulistanos, que estão mais acostumados a comparar a maior capital da América Latina com outros grandes centros urbanos como Nova York, Xangai. Mas era uma cidade cheia de concreto cinza e cheia de fios, realmente parecida com São Paulo, ou alguns pontos de São Paulo. Parecia a São Paulo real, não a “auto imagem” que temos da cidade.
São Paulo



também São Paulo
Para deixar bem claro, eu amo São Paulo, uma cidade que me acolhe há 12 anos, com muito a oferecer em termos de cultura, gastronomia e beleza sim. Uma cidade com muita grana. Grana que ergue e destrói coisas belas, como cantou Caetano.






“Se a Avenida exilou seus casarões, quem reconstruiria nossas ilusões?” , Eduardo Gudim
Há quem diga que “São Paulo odeia sua história”. Será? Mas fato é: muitos prédios históricos foram (e serão) demolidos para dar lugar a construções de gosto duvidoso sem causar grandes revoltas. Mesmo assim, São Paulo consegue ser bonita em vários pontos, geralmente nos quais há dinheiro. E agora voltamos à reflexão do início. E se bom gosto for só outro nome pra privilégio?
Dinheiro compra bom gosto ou bom gosto é reflexo do dinheiro? Primeiro teríamos que definir o que é bom gosto. Bourdieu chamou de “distinção”, disse que o gosto separa, define e hierarquiza.
O seu gosto, sua formação estética, depende do que chamamos de capital cultural que depende de:
tempo (estudo estético teórico)
exposição (a museus, revistas, viagens, referências),
dinheiro (para consumir/acessar)
Já escrevi nessa newsletter que “seu gosto não é seu”, ele é herdado culturalmente principalmente pelo ambiente onde você cresceu e vive. Por isso, algumas pessoas vão ter uma certa familiaridade invisível com os “códigos certos" do bom gosto.
Edouard Louis, escritor francês que fala sobre mobilidade de classe, tem algumas (várias) passagens nas quais traz a questão do “gosto certo".
“Tentar apagar os rastros do lugar de onde se veio é também reaprender o que é belo — ou, pelo menos, o que os outros acham que é.”
Edouard Louis
Primeiro que há um esforço para se distanciar daquilo que você fazia, ou gostava e é considerado feio. Como falar alto e/ou com sotaque (exemplos dele). Abandonar gostos antigos, segundo Edouard, é exaustivo e gera culpa.
A moda nos faz achar bonito o que achávamos feio e vice-versa. Há poucos anos, marrom era cor “de velho” e agora é o que há de mais chique. Não é?
Sim, os códigos de beleza mudam de tempos em tempos. Você talvez tenha notado a “baixa do minimalismo” na arquitetura e decoração de casas para a volta da “decoração afetiva”. É um resgate à cultura brasileira. E, não por ironia, o visual nostálgico tende a agradar às classes altas, que buscam uma decoração “pé no chão, natural, simples, raiz” e desagradar às classes baixas que ainda associam piso de caquinhos, louças âmbar e cobogó à pobreza. Como toda tendência, trata-se de uma diferenciação e, geralmente, leva ao aumento de preços de itens antes populares.



O que é considerado “belo” depende do tempo, do lugar e de quem tem o poder de nomear. O gosto dominante geralmente se impõe como universal, como o “bom-gosto”, que é, não por acaso, o gosto das elites. No plural, porque o que define bom gosto não é só dinheiro, é o “capital cultural”, que segundo Bourdieu permite que certos grupos definam o que é belo e o que é cafona, o que é arte e o que é desordem.
Voltando à cidade. Quem tem direito à beleza? Como a beleza se distribui? A gente sabe, os bairros ricos têm regulamentação de fachadas, nivelamento de calçadas, regulamentação de largura e ocupação dessas calçadas. Alguns bairros mais ricos têm ainda paisagismo, fios enterrados, flores, árvores, bancos (!!) e… silêncio. Tudo isso é privilégio. Os bairros pobres ou não-tão-ricos (decadentes) têm fios expostos, lixo visível, buracos, muito ruído, som alto, muros altos, paredes cegas. Parece que em localizações privilegiadas, a rua é de São Paulo, é de todos, já em locais desfavorecidos a rua não é de ninguém, é onde passam os carros, mal tem calçada, postes, fios, desorganização, lugar de risco, sujeira, improviso. A beleza é muito mal distribuída.
Tanto a da natureza: as árvores estão onde há tempo e dinheiro para cuidar delas — e onde há poder para exigir. Praças e áreas verdes são menos comuns ou malcuidadas nos bairros populares, na periferia quase inexistentes. Outra: a contemplação exige respiro, silêncio. Algo difícil de encontrar fora dos bairros ricos.
Quanto a beleza produzida: quase não há museus, bibliotecas, teatros, cultura em geral em bairros periféricos. Quando existem, muitas vezes são mal financiados, dependem da boa vontade de muita gente engajada pra manterem-se de pé.
Soma-se que a falta de acesso ao belo não é só física, é também simbólica: é preciso ter olhos pra ver. A criança pobre cresce sem referência, sem sentir que a beleza é pra ela. Porque o belo não fez parte da sua vida. Então quando ela tem a oportunidade de ir a um museu ou a um ambiente bonito, sente que não pertence àquele lugar. Quem não foi “educado” para apreciar a beleza pode sentir que ela não é para si. Às vezes se sente mal em ambientes belos: tem raiva, se sente mal. “Por que você me trouxe nesse lugar metido à besta?”.
E não é que os pobres não amem o belo. É que é preciso ter olhos treinados para ver. O acesso a beleza exige senha, código, tradução. E isso é o que muitos não têm.
Silêncio é um luxo cada vez mais inacessível 🫠.
Que conteúdo bom! Obrigada pela reflexão.